sábado, 1 de maio de 2010

CAPÍTULO DOIS - PATRÍCIA

Pois esta é a história de Walter. Muitos diriam que na verdade, a personagem principal da história é Patrícia, já que foi por causa dela que tudo aconteceu. Mas seria a maior das injustiças atribuir a alguém tão melindroso e vil a maior carga de incapacidade de se planejar e colocar em prática qualquer coisa que exigisse uma certa astúcia maior. Não quero com isso dizer que o Walter fosse um energúmeno. Acho que a etimologia da palavra não se aplica a ele em pleno sentido. Na verdade, ambos foram, em muitos aspéctos, descuidados. Estamos falando de pessoas que, apesar de terem alcançado a maioridade há não muito tempo, já tinham experiência de vida o suficiente para levar cabo o que se propuseram a fazer. Patrícia estava com vinte e três anos. Era casada com um caminhoneiro chamado Batista, porém, ainda não tivera filhos. Moravam numa casa na rua principal de Longa Espera, bairro situado cinquenta e três quilômetros a noroeste de Montes Claros, com acesso dificultado, através de uma estrada tortuosa e esburacada, subindo o morro da ovelha. Ela odiava aquele lugar e odiava ainda mais o fato de que Batista se orgulhava em dizer que jamais sairia de lá. "Aqui é muito bom!" dizia ele, vangloriando-se de possuirem uma casa e um caminhão. Esta noção de segurança que ele empurrava-lhe garganta abaixo não só não era digerida, como a enfraquecia. Batista acreditava estar-lhe fazendo um grande favor, principalmente após ter pago (a crontragosto) por seus estudos. Mas não deixou-a prestar vestibular para o curso de veterinária em Água Santa, mesmo este sendo em uma universidade pública, pelo fato de ela ter que viajar sem ele por perto todos os dias, no ônibus que a prefeitura cedera aos alunos. Ele estava com trinta e oito anos de idade e já houvera sido casado por duas vezes. "Ticinha", como a chamava, era muito mais bela do que as suas ex-esposas e arrisco-me a dizer que era a mais bela jovem de Montes Claros inteiro. Seu cabelo negro e liso, junto com seu rosto de traços finos, trazia da família de seu pai. Já a pele branca e sedosa herdara da mãe. Durante alguns anos os filhos de Seu Alcides Trindade e os de Seu Genoval de Oliveira, fazendeiros conhecidos de Montes Claros, tentaram cortejá-la. Foi noiva de João, dos Trindade e namorou com Carlos "Tortinho" Oliveira (que ficou manco da perna esquerda após cair da cachoeira do morro da correnteza). João terminou o noivado após ter sido convidado a trabalhar como médico em São Paulo (o convite caiu-lhe como a desculpa pereita, já que cinco meses antes ela engravidara dele, perdendo o bebê no segundo mês de gestação). Dissera a ela que não estava pronto para assumir compromissos desse porte, já que sua carreira estava apenas começando e a possibilidade de ser pai foi-lhe prematuramente traumática. Já com "Carlo Tortinho" não se aprofundou tanto no relacionamento, uma vez que ele era alcólatra e a agrediu na cabeça com um prato de porcelana, durante a festa de aniversário de seu primo. A família dele pediu-lhe desculpas formais, que não foram suficientes para fazê-la continuar com ele. O Batista ela conheceu na quadragésima sexta festa da queimada, um evento folclórico que culminava com uma grande queima de fogos, e com ele fora morar. Vez por outra, quando estavam em grandes dificuldades financeiras, ela recorria a seu pai, que era dono de uma mercearia em Montes Claros, ou conseguia algum trabalho temporário, como nos últimos três anos na fábrica de fogos de artifícios Consagração. Ela era bastante inteligente e determinada, aprendendo rápido todos os ofícios nos quais trabalhava, e não estava nem um pouco contente com a possibilidade de ver sua vida afundar para sempre naquela "cidadezinha de merda", sendo esta apenas uma das muitas formas verbais com as quais ela amaldiçoava a Longa Espera. Seu marido costumava passar de dois a cinco dias fora e não se demorava em casa nos seus dias de folga. Ela o tinha como um homem altamente desprezível, mas possuia uma incrível capacidade de esconder seus verdadeiros sentimentos, embora admitisse estar ficando cada vez mais sem paciência com a forma como ele a tratava. Não era de seu feitio ser tão submissa, a menos que para outra situação não houvesse escapatória. Gostava de usar vestidos floridos e seu preferido era um de cetim que sua tia Marta lhe dera em seu último aniversário; preto com margaridas estampadas, com alças largas e um belo decote que expunha boa parte de seus seios medianos ; o único vestido curto que Batista a permitia usar, pois deixava-a linda demais; como um anjo. Mesmo com tanta beleza ela era a tradução do descontentamento de ter nascido ali e de ver seu desejo de conhecer lugares, pessoas e amores diferentes se desfazer para sempre por causa do comodismo do seu marido. Pensou várias vezes em fugir enquanto ele estivesse fora, em suas viagens para o nordeste, nas quais levava cerca de dez dias trabalhando. Quando ele chegasse ela já estaria longe, muito longe dali. Esse era o seu derradeiro plano e ela já havia começado a arquitetar a fuga. Disse-lhe que precisavam ampliar a casa, fazendo mais um quarto, porque ela finalmente decidira ceder aos desejos dele e engravidar. Certamente essa notícia causou grande alegria em Batista, que era o único dentre seus irmãos que ainda não tinha filhos. Mas para tal reforma não tinham dinheiro o suficiente, de modo que ela teria mais uma vez que trabalhar uma temporada na fábrica de fogos. O que ela ganharia em quatro meses de trabalho daria para fazer mais da metade da obra, mas o seu plano era pegar sua parte e mais a dele e fugir para a casa de sua prima Rosa em Campo do Frade, à 1.323 Km dali, no norte do estado, de onde ela decidiria para onde ir em seguida. Estava disposta a se aventurar e disposição não lhe faltava, pois a guardara por toda sua vida. Ela estava ansiosa pelo início da temporada de festas, que demandavam da fábrica grandes encomendas de fogos de artifícios e já no dia seguinte foi ao escritório do Sr. Santana, dono da Consagração e nas mãos deste deixou seu currículo. Contava os dias enquanto submetia-se ao sexo frio com Batista, para o qual mentira ter parado de tomar anti-concepcionais. Dois de maio era a data que lhe informaram ser o início das contratações temporárias. Seu nome estava na lista que foi colada na portaria da fábrica, desta vez para trabalhar no escritório, como secretária do Sr. Santana. Faltava uma semana para seu caminho cruzar com o de Walter.